terça-feira, 8 de novembro de 2016

#Um Dia Com... Joel Neto

1. É muito difícil descrever o meu dia normal, porque até hoje ele nunca me aconteceu. Todos os dias da minha vida, tanto quanto me lembro, foram de algum modo anormais. Pelo menos, é isso que procuro neles: aquilo que os distingue – o que fui capaz de amar, ou de aprender, ou de recordar nesse dia e que nunca tinha amado, aprendido ou recordado antes. Por isso, mantenho uma rotina o mais rígida possível. Sem rotina, é mais difícil identificar o que ocorreu de novo – é mais difícil identificar o milagre. A rotina é o inimigo número um do tédio. Rotineiramente, começo os meus dias passeando os meus cães, o Melville e a Jasmim, com a Catarina. Caminhamos pelo menos cinco quilómetros. Às vezes vamos até ao supermercado, outras subimos a montanha e outras ainda perdemo-nos nos cerrados, a brincar com eles. Conhecem os cerrados da ilha Terceira?



2. Passo toda a manhã a trabalhar nos meus livros, mas imagino que isso não tenha grande interesse. É um tipo sentado à mesa, rodeado de livros, a tentar estabelecer uma ordem no caos do seu universo intelectual e criativo. Posso mostrar uma foto do meu escritório, claro. Mas talvez valha mais a pena viajarmos ao interior do trabalho ele próprio. E todo o meu trabalho é lembrar. Lembrar o passado remoto, lembrar o passado recente. Lembrar as emoções que me provocou este ou aquele acontecimento, especular sobre as emoções que provoquei com este ou aquele gesto. Lembrar o homem que fui ontem e lembrar o homem que fui um dia – antes mesmo de ser um homem, nada mais do que um rapaz. Perceber como me tornei nisto que sou, o que quer que isso seja. Percorrer fotos da infância e da adolescência é, por isso, um hábito diário.

 

3. À hora de almoço – quase sempre tardia, o que constitui o maior estremeção diário na minha rotina –, faço uma pausa, porque a tarde e a noite são para dedicar sobretudo ao trabalho dos jornais. Uma vez por semana, se consigo, prolongo um pouco a pausa e vou à pesca. Às vezes vou até jogar golfe, o mais inconfessável dos meus vícios. Não creio que os luxos burgueses de um escritor tenham grande interesse para o leitor, mas talvez não se possa dizer o mesmo das suas actividades braçais. Sempre que os compromissos com os jornais estão adiantados, gosto de trabalhar um pouco na minha horta, no meu jardim e noutros afazeres domésticos. São libertadores e úteis, coisa que nem sempre sentimos com a escrita. O Chico, que vem cá trabalhar umas horas por semana, ensina-me muita coisa. Esta braseira de jardim fui eu que construí, embora os muros, as escadas e os bancos tenham sido feitos por ele. Tenho muito orgulho nela.

 

4. Para além da escrita, o trabalho de divulgação dos livros já publicados e investigação e repérage para os livros a publicar vai-se tornando cada vez mais frequente nos meus dias. Anormal começa a ser a tarde em que não tenha algum tipo de compromisso com os leitores ou com as fontes – e, inclusive, que não tenha de viajar. Nos últimos meses, e tendo em vista o romance que preparo para 2018, tenho visitado uma série de cidades que conhecia mal ou desconhecia em absoluto: Praga, Bristol, Friburgo, Boston... Por todas elas – e ainda mais algumas – passará o livro. O epicentro, esse, será na cidade da Horta, na ilha do Faial, aqui nos Açores. Tenho-a visitado com frequência, em diferentes alturas do ano. Sinto uma intimidade (lá está a minha palavra preferida) cada vez maior com ela.



5. Talvez o momento da minha rotina diária mais imune à anormalidade – o momento em que menos adventos significativos ocorrem ao longo do ano –, seja aquela hora ou duas que passamos na sala, depois do jantar: eu, a Catarina e os cães. Às vezes é meia hora apenas, outras não mais de quinze ou vinte minutos. Depende do trabalho com que andarmos e da tenacidade com que, durante a jornada, tenhamos conseguido escapar à tentação da preguiça. Mas, bem vistas as coisas, é o melhor momento do nosso dia – o mais confortável e íntimo, o mais desprovido de surpresas. No alarms and no surprises, diriam os Radiohead. Muitas noites, deixamo-nos apenas a ler. De vez em quando, vemos um pouco de televisão – um filme ou uma série tonta. Mas, sobretudo, ouvimos o brando crepitar da lenha na salamandra. E a Jasmim a ressonar. Ressona como o meu avô, a minha cadela – é como se o dono original desta casa continuasse aqui connosco.



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